Uma biblioteca itinerante em nome da memória e da resistência

Texto por Douglas Ciriaco

Imagens por Edelson Werlish

 

Em 9 de janeiro de 2003, o então presidente Luís Inácio Lula da Silva sancionava a lei 10.639 e tornava obrigatório o ensino da cultura e da história afrobrasileiras no currículo básico da educação. A medida, porém, não surtiu efeito prático imediato dentro das escolas, com muitos professores ignorando a lei e alegando falta de material sobre o tema para usar nas aulas com seus alunos.

A fim de contrariar essa noção errada e infelizmente comum de que faltam materiais para trabalhar com cultura e história afrobrasileira, o ativista Zelador Cultural Candiero e Melissa Reinehr, sua companheira, desenvolveram o projeto Biblioteca Quilombola.

“Quando a Lei 10.639 foi aprovada, a maior desculpa que ouvíamos de professores sobre o porque não trabalhar com cultura africana era a falta de material. Hoje, em 2016, você vai nas escolas e pergunta ‘por que vocês não trabalham com cultura indígena, com cultura africana?’, a resposta ainda é ‘porque não tem material’”, conta o ativista e poeta de 43 anos.

“Quando falamos disso com eles [educadores], mostrando que existem materiais, parece algo distante. E nós tínhamos essa vontade de mostrar quanto material já foi produzido, e não só a partir de 2003. Por exemplo, cada samba-enredo é uma aula de história”, prossegue Candiero. “Se o professor realmente tiver comprometimento e quiser levar esse conteúdo para os seus alunos, ele vai levar sem problema algum, porque é farta a existência de material.”

foto por Michele Torinelli

foto por Michele Torinelli

Ancestralidade e memória

Instalada dentro de um micro-ônibus, a biblioteca reúne mais de 2 mil títulos de escritores negros e africanos sobre história, poesia, política e cultura, com obras dedicadas a adultos e crianças. Desenvolvido durante três anos, o projeto tem como objetivo não só funcionar como uma provocação para que escolas comecem, finalmente, a resgatar a contribuição dos povos africanos na construção do Brasil, mas também de estimular que cada comunidade quilombola cultive a sua ancestralidade através da memória.

Em seu acervo, a Biblioteca reúne títulos sobre poesia, história, cultura, política, e livros para criança. Tônica bastante presente no acervo, a desconstrução do mito de Curitiba como uma cidade europeia é um dos pontos centrais do tema. “Existe o Memorial no Pinheirinho, mas nós queremos o Centro. É ali onde estão diversas contribuições do povo negro na construção de Curitiba”, comenta Candiero, destacando a Igreja do Rosário, construído para e por escravos, no Largo da Ordem.

Destacando uma tradição africana pela história contada de geração em geração pela comunidade, o ativista afirma que a verdadeira biblioteca quilombola é a oralidade. “A biblioteca está viva dentro da comunidade”, afirma, “e esta biblioteca é mais algo para fazer as pessoas se interessarem pela leitura, pelos vários modelos livros, pela riqueza de tudo isso.”

Ele ressalta ainda o cuidado na seleção dos livros para mostrar algo diferente do que é visto normalmente em livros de história que mostram os negros no Brasil. “Geralmente, quando você abre um livro em uma biblioteca, o que tem lá? É negro acorrentado, negro batendo em negro, e como é que uma criança vai se identificar com isso?”, comenta. “Então, nossa intenção foi buscar obras que não tenham este conteúdo, coisas fortes para complementar o que eles já sabem e, através disso, instigar que a comunidade comece a escrever as suas histórias, a registrar a sua oralidade.”

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Quilombolas e Sem-Terras

O projeto ainda está em fase de pré-estreia, mas Candiero e Melissa fizeram questão de que ele participasse do encontro na Escola Latino Americana de Agroecologia. Segundo o ativista, há diversas interseções entre as lutas de quilombolas e camponeses sem-terra, tornando o momento bastante propício para o lançamento de sua iniciativa. Para isso, moradores de comunidades quilombolas de diversas regiões do estado também foram convidados para o encontro.

Além da apresentação da Biblioteca Quilombola, Candiero também realizou rodas de conversas com os quilombolas que visitavam o Assentamento do Contestado, repetindo e estimulado a ancestral tradição da oralidade cultivada por povos nativos tanto do continente americano quanto do continente africano. Como não poderia deixar de ser, a música, acompanhada por instrumentos de percussão ou pelas palmas, também estiveram presente durante todo o dia.

Falando estritamente sobre o Assentamento do Contestado, o peso histórico do local, que já foi de propriedade do Barão dos Campos Gerais, dono de homens e mulheres escravizados, se soma ao fato de que três grandes comunidades quilombolas ficam na região da Lapa. Além disso, a cidade da região metropolitana de Curitiba também é palco de uma das mais belas congadas do país.

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Próximos passos

Apesar de já estar há 30 anos na estrada, Candiero inicia agora uma nova etapa em seu ativismo político e cultural no cultivo da ancestralidade africana. Assim, o principal projeto da Biblioteca Quilombola é espalhar sementes por onde passa. “O nosso plano para o futuro é ir em cada comunidade e incentivar os moradores a ter o seu próprio ônibus-biblioteca”, afirma.

“Nós estamos em um estado com 399 municípios, 12 milhões de pessoas, com 90 comunidades quilombolas, então, nós queremos pegar essa experiência e levar para a comunidade, provocá-los e dizer ‘é aqui na comunidade que precisa ter isso, quem são as pessoas que estão estudando isso aqui e querem fazer um projeto?’”, prossegue o zelador cultural.

Um comentário sobre "Uma biblioteca itinerante em nome da memória e da resistência"

  1. Candieiro e Melissa
    Pessoas que falam e fazem… Lutam por seus ideais, crenças e pela dignidade Humana!
    Admiro muito vocês e todos os que se mobilizaram para que mais este feito acontecesse!
    Uma abraço carinhoso e todo meu respeito
    Laura Monte Serrat Barbosa

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